Zittau parece ter parado no tempo. A guerra passou-lhe ao lado, mas o mesmo não se pode dizer dos anos. A artilharia russa pode ter poupado esta pequena cidade da Alemanha Oriental, mas o modelo político que os eslavos transportavam consigo na bagagem causou danos, de outra forma, a prazo. Depois de quarenta e cinco anos de estagnação e imobilismo económico, duas décadas de injecção de capital proveniente da metade ocidental do país não foram suficientes nem sequer para lavar a cara de Zittau. Ao lado de umas quantas lojas modernas, alinham-se os velhos edíficios que se mantêm de pé a custo, marcados pelas cicatrizes acumuladas ano após ano, desde pelo menos meados do século XIX. Em algumas, existe ainda vida, mas a maior parte parece ter sido abandonada ao seu destino. Contam-se histórias de gentes que assim que teve oportunidade partiu em direcção ao ocidente e nunca mais voltou; ou de idosos que faleceram, e os herdeiros nomeados, vivendo algures em Frankfurt ou em Koln, nem sequer ponderaram apresentar-se para assumir a propriedade passada. E com isto Zittau perdeu habitantes. Antes da queda do Muro de Berlim eram mais de 60.000. Hoje, os habitantes desta pequena cidade estão reduzidos a uns meros 20.000.
Aqueles que se procuram estabelecer aqui provenientes da antiga Alemanha Ocidental são olhados com alguma desconfiança e têm que superar dificuldades acrescidas: um canalizador, um pintor, um electricista, apresenta-lhes com toda a naturalidade deste mundo orçamentos que podem ir até mais 300% do que pediriam a um natural da terra. A imagem de um Ocidente Dourado ainda não se desvaneceu, apesar da reacção massiva de desilusão, trazida por um sentimento de frustração que nos tempos que correm provoca em muito boa gente um sentimento de nostalgia relativamente à vida dura mas segura dos tempos de Honecker.
Zittau é de resto um ícone dessa outra Alemanha, uma filha de Erich Honecker e, por assim dizer, neta de Vladimir Ilitch Lenin. É nisso que reside o seu encanto para nós, meros ocidentais, estranhos a décadas de sofrimento daquele povo, à opressão, à subversão de toda uma gama de valores tidos como banais e universais pelos membros da chamada Civilização Ocidental. É portanto um voyeurismo sádico que nos impele para Zittau e nos entusiasma a cada casa em estado de semi-ruina que encontramos.
A viagem é coisa simples de se fazer. A Students Agency, que de estudantes tem apenas o nome, vende online os bilhetes para os seus autocarros expresso de luxo: cadeiras mais confortáveis do que as de um avião, internet sem fios gratuita, exibição de filmes a bordo, hospedeiras prontas a assistir o cliente, venda de bebidas e snacks a valores simbólicos…. luxo? Sim. Mas a preços nada luxuosos: um bilhete para Liberec num destes autocarros amarelos custa algo como 3 Euros. Depois, é andar uns 100 metros e entrar num comboio regional, daqueles de dois vagões, assemelhando-se a um grande eléctrico, apenas mais vigoroso e robusto. O custo desse segundo troço da viagem variará consoante o número de pessoas no grupo, mas a média andará pelos 2 Euros. Serão 45 minutos de viagem durante os quais os olhos mal se conseguirão desviar da janela: a paisagem é apelativa, com os vastos campos a serem entrecortados aqui e ali por pequenas aldeias ou grupos de casas isoladas, construidas à maneira da região, desenhadas para aguentar os longos invernos e os nevões que com eles chegam.
Uma vez em Zittau é uma questão de explorar livremente. Percorrer as ruas, observando. Os detalhes a notar são muitos, os vestígios daquela outra época que nos fazem sentir numa cidade museu, imobilizada num tempo que se apagou em todo o seu redor, vão-se revelando gradualmente. Na praça central os edíficios ganharam o privilégio raro de uma recuperação condigna. Mais à frente, um restaurante ardeu, algures no passado, e como ficou, assim se encontra. Já numa das vias de saída da cidade, passa por nós um comboio turístico, a vapor, aparição inesperada mas com muito mais sentido do inicialmente intuímos. É a imagem da colisão destes dois mundos. Aquele “cavalo de ferro” expelindo fumo negro de carvão em combustão, correndo ao lado de uma estrada pejada de modernos Volkswagen e BMW’s. Assimetrias. A Alemanha mais oriental é um mar de simetrias, e Zittau não é mais do que o exemplo acabado desses mundos que não se conseguiram compatibilizar ainda com as consequências das quatro décadas de separação.
Mais à frente chegamos ao que foi uma base do NVA (National Volks Armee, ou seja, Exército Nacional Popular). A zona é, também ela, um espelho das assimetrias profundas que se encontram aqui por todo o lado. Lado a lado convivem imensos blocos residenciais de aspecto tristonho, cinzentões, com edíficios recuperados, pintados de cores alegres. As instalações desportivas da base foram convertidas para uso da comunidade. Um palacete, porventura o antigo edíficio de comando, é agora um hotel. Nas áreas mais distantes da base, encontramos os pavilhões onde eram abrigados os carros de combate, e mais blocos. Um par deles têm as portas escancaradas, convidando à exploração dos seus interiores. É uma experiência memorável. Conviver com os fantasmas de outros tempos é sempre didáctico.
Fotos adicionais aqui (côres) e aqui (preto e branco).